Poesia para saborear a cultura da mesa, dos quintais, das padarias, dos fornos, das confeitarias. Ely Manoel Machado é um confeiteiro das palavras, colore seus versos de hibisco para ruborizar o sorriso do dia. Suas metáforas são singelas e provocam o sabor e as paisagens de uma Minas Gerais, cujas marcas fortes dos mineiros passam pelas cozinhas e varandas, onde "o sopro do vento traz o cheiro do destino".
É assim que se faz a poética de Brassagem, como se cada poema trouxesse um ingrediente para levar o sabor fermentado de cada letra se juntando para formar poemas deliciosos, em um processo de fabricação que se dá no calor das vivências, de onde jorra uma espécie de licor que se mistura até se extrair uma mistura macia, agradável ao paladar dos leitores.
Este livro traz a leveza, mas sem faltar intensidade, é como se a simples ingredientes se acrescentasse o levedo que cresce a massa e transforma o que antes não tinha sabor em algo muito agradável. Assim, ao ler um poema de Ely, logo se quer degustar todos seus escritos.
De cada poema dessas páginas que se seguem exala um sabor intenso que traz as cores das paisagens, hipérboles poéticas e antíteses rebeldes. Está tudo aqui, pronto para ser trazido à luz que erradia como um Sol à noite até provocar o sorriso feito um beijo regado.
Saboreie Brassagem sem moderação!
Brenda Marques Pena, jornalista e mestre em literatura.
NOVA PAISAGEM
Dedico a paisagem
A passagem dos olhos
Por dentro dos meus versos
Nas letras perdidas
Dessa poesia que busca encontrar
Desses poemas desencontrados
Com gosto de café amargo
Sem doce de poesia
Falta morango
Na torta da minha vida
Para fazer as curvas da minha estrada
E adoçar a delícia da caminhada.
O SUBIR DA CASA
Sapatos
Pernas
Cozinha
Living
Lava
Cama
Vou erguendo a casa
Fundações esteiram
Pernas de concreto
Sobem pelos estribos amarrados
Entrelaçados...
Poemas concretos estruturais
Geométricos
No ferro que o desenha
Cada saco de cimento
A pedra
O pó
A carne
O sangue
ANDANÇAS
Quero esculpir o passado
Numa rua de barro
E resgatar nossa alegria
Vou redesenhar a casa
Como ela sorria
Trazer os primos de volta
E parar o tempo
Como numa fotografia.
TEMPO
O tempo rasga a forma
E rasga o verdadeiro sentido das coisas
Rasga, pica e oprime
O tempo não escorrega
E rasga toda a matéria
Rasga o próprio tempo
O tempo rasgado da forma
Que rasga e põe rugas nas almas
E caras rasgadas de tempo
O tempo polui a visão
Rasga as cordas que rasgam palavras
Rasga as notas que cantam o tempo.
MOEDA
Inauguro a paixão irreal em meus significados
As dores tão insignificantes
Os desejos mais objetivos
As janelas mais do que interessantes
As portas se abrem com muitas flores
As janelas
A sacada
O céu envolto de uma lua querendo sol
De um dissabor querendo tempero
De um nada desejando um tudo
Inauguro a paixão do submundo
Como desejo do mundo solitário
Subversivo e atormentado
Corto a fita do que está por abrir-se
A querer o meu sol
O sol da boa vontade
Da solidariedade e a ideia positiva
Imperando sobre as dificuldades subjetivas
Inauguro o inesperado
A saída pela porta invisível
O chegar pelo oculto da poesia
Inauguro as casas
As massas
As flores
E a energia
Inauguro a felicidade
Como fim da inércia
Que cobriu minha poesia.
VISÃO
A cidade de cima é estranha
As luzes são cenas
Os quartos são filmes
E toda a luz se apaga
Os faróis se cruzam
As ruas se contorcem
E o tempo míngua
Inevitavelmente.
ROSAS
Nossa casa era mais jardim que casa
E era eu que levava as flores para passear
Algumas delas ainda estão guardadas
Intactas dentro de livros
Que quando abertos
Trazem a tona e a saudade
O tom de nossas roseiras.
MÃOS
Uma casa é como um poema
O pedreiro tece como um poeta
E a parede sobe
Como um verso que cresce
O título é o telhado
Que tira o verso da chuva
E corre para a cama quente
A cozinha é a porta de entrada
Como a metáfora que dá forma ao bolo
E fermenta feito cimento
A massa da construção.
ESTRADAS
Sou da geração do videogame
Mas o meu mofou
Enquanto eu
Arejei meus pés
Torneei as pernas
E enfrentei os rios
Pesquei todas as mentiras
Dentro dos peixes mais gigantes
Que me carregaram para dentro d’água.
PALAVRAS
O aço
O passo
E o compasso
A asa
A casa
E a brasa
A cerveja
A certeza
E a peleja
O mel
O fel
E o céu
O mundo
O mudo
E o tudo
O nada
A estrada
E as entradas.
MACHADO
Um bom machado
Carece de uma boa cunha
Para travar seu cabo
Depois é que se faz o fio
Com a lima amarga
Docemente em sentido único
Dança de floresta e fundição
Encontro de magma e vida
Fervura e botânica.
nela de um azul fechado
Abre-se pela manhã para receber o Sol
Que como a família
Entra cantando e ferve a água
Do amargo café
A janela da casa da minha tia
Fecha às 16h para os pernilongos
Mas se bater na porta
Sempre tem um pedaço de prosa
Guardado numa lata de broa.
MAIS LENHA
São felizes as casas
Que a cozinha é na varanda
As crianças caçam a lenha
Um amigo aninha os gravetos
Alguém dedilha os feijões
Uma tia traz a galinha
E o coração bate forte o milho
Até a gente virar fubá
A fumaça avermelha os olhos
Defumando emoções.
BRANCO
Sábado é dia de branco
De brancas nuvens
Onde me deito sereno
E viajo como um anjo
Com as harpas do céu
Sábado é dia de sonhos
De hipérboles poéticas
E antíteses rebeldes
Querendo rasgar o peito
Sábado é dia de glacê branco
Com morango dentro
Dia de morrer de vontade
Porque domingo:
Fecham a confeitaria
Com toda sua delícia.
O VENTO
o vento tem mais do tempo
que possa pensar um sem vento
mais que um deus
o vento voltou voltando volta
ventou soprando trova
chorando a ventar
falando aos ouvidos
estilhaçando janelas,
percebe?
o vento voltou ventando vento
com todas as coisas dando vento
e todas as ideias ventando vendo
o vento ventou
ventou o tempo
e soprou vento
sem vento no ouvido
não há vento dentro.
PAISAGENS
O cheiro amadeirado do vinho
Sua embriaguez onírica
Sensação de paz e poesia
O poeta escultor de casas
Amante das serras e das estradas
De amores latinos
E jardins na alma
Incendiador, engaiola os gravetos
Na gaveta da lenha
Para dourar o alho na panela de pedra
Decorar as paredes
A vida
Transcender as paisagens
E traçar os versos dos traçados
Com cemitério, comércio e obreiros.
Para haver poesia
Se faz necessário um vilarejo.
CASTIGO
E como se o meu corpo fosse a lona de um pneu
Vou me arrastando pelas estradas
Como se minha cabeça perdesse o caminho
Abre-se uma rua que parece um labirinto
E para os pneus tantos pregos
Quanto espinhos para os meus pés
E já não há compaixão ou amor
Apenas desespero e dor
Entre engrenagens enferrujadas
Sou a carne que se esfarinha
O som dos meus passos
Precipitam languidez e peregrinação
Esfolado como um cotovelo
Arrasto-me dentro de casa.
TEMPLO
Há muito tempo minha boca não toca outra
Passo as tardes entre meus canteiros
Tijolos, madeiras, vitrines
Cervejas e novelas
Busco inspirações em doces
Concretos e frutas abstratas
E meus versos patinam no barro
Tem chovido todos os dias
Apesar do Sol
Todos partiram
Conseguiram significados
E esta insignificância?
Passou meu tempo
Vegeto dos meus tropeços
Morro das minhas insônias.
ALGUM VERSO
Todo tecido nasce branco
Como a noite
Que ganha estampas
Quando o dia decanta
Como um amor corriqueiro
Desses que precisam de afogamento
Em poças de lama em chuvas de verão
A poesia é o logos da quimera
Letra utópica da realidade subjetiva
Que conversa entre rosas e morangos
Cerejas e algoritmos
Entre álcool e perfume
Da química a natureza
Vagando feito uma nuvem
Entre a objetividade e o desejo.
MINHA PASÁRGADA
Da minha janela azul
A serra é inteiramente minha
Sua capela histórica se torna ainda menor
E mora dentro da minha paisagem
É um quadro em movimento de nuvens
Que descortinam nuances da natureza
Acordar aqui já me valeu a vida.
A luz do verso tem um coleiro ao fundo
Calangos tomam café comigo
Quando a tarde vem deitar o dia
É o trinca-ferro que vem chamar a noite
Leio até me arderem os olhos
Os tratados da minha geografia
E alguma parca poesia pequena
Sento solitário na parte alta da casa
E observo o vento e a dança dos arbustos
Algum tucano rema deslumbrante
E corta o azul do céu
E assim se esvai o dia
Alguma cerveja
Algumas cerejas
Pão-de-canela
Amasso um queijo
Sou um poeta das massas
Das pequenas e das grandes massas
Do minimalismo estético
À exuberância bucólica.
BISCOITOS
A padaria do meu avô vendia
Todos as delícias de uma doce infância
Sonhos e marta-rochas
Pedaços de pudim
Quindins refinados
E biscoito-fino
Ainda há o calor dos pães
E o gosto do rocambole aqui dentro
Meu pai e minha avó
Os sonhos e os cafés
O balcão, o caixa de alavanca
- Trim
A felicidade vinha no ar em fim de ano
Com todos os assados do natal
Tostando a pururuca
Ah meu tempo dourado
Venderam a padaria
E ficamos mais salgados.
OBREIRO
Abrindo fendas na terra
Trago a luz colunas e estruturas
E assim prospero o desamor
Ainda que pince meus nervos
Travando minhas costas
Arrasto-me feito um cão atropelado
Até os confins da paisagem desfigurada
E no compasso batido da formiga
Vou erguendo a nova morada.
PLANTAS
Coração se forma
Deflora
Na cardiotonia da manhã
Semente de amor
Regada com os vinhos da vida
Luz de sol e poesia
Sol de verão
Vento de primavera
Terra fecunda
Flor renascida de outono
Inverno de resignação
Vai hibisco vermelho
Ruborizar o sorriso do dia
Venha cantar nos meus jardins
Versos embriagados de beleza.
ARACY
Esse choro fino
Interminável a cair do céu
Traz saudade ao meu coração
O fritar do alho
O engrossar do angu
E aquele feijão
Que só minha avó bordava
Chovo dentro.
PASSOS
Na porta do sobrado
Um bilhete escrito com pedras
Alguma fotografia cor do poente
E os degraus abraçando nuvens
Engatinhando sensações
As paredes tremulam:
Sua da minha carne
Todo o cansaço do meu coração
Deito numa rede
Desenho este sobrado
Recolho folhas da primavera.
UMA SÓ ALMA
Corre pelos meus braços obreiros
uma vontade súbita de um abraço forte
nosso vinho de garrafão
a pururuca de uma arroba com a maçã à boca
rabanada dormida em cama doce
e a mesa colorida dos frutos da primavera
A gente se olhava
Se admirava
Mas num dia 15 de dezembro
Depositou seu espírito em mim e se encantou
E me restou seguir a vida
Que na verdade é a dele
Porque somos um só
Ele vive dentro de mim
Seu espírito é o meu
Seus amigos
Seu carnaval
Virei pai de mim mesmo.
FRUTA DO CAMPO
E se for verdade
Que este roxo
Seja da amora dos meus versos
Num diálogo entre fruta e palavra
Que deságuam segredos e paixões
Desaprendi a fazer café
Para passar no coador da esquina
Fervendo de vontade por essa amora
Provocante
Pobre de mim que saio de casa
Solitário e errante
Sem companhia para a vitamina
Que mistura as minhas ideias
Ponho a me afeiçoar pelas guloseimas
Da nossa vã padaria
Como o bom português que descendo
Porque só me resta o café
Amora cor do meu presente.
A DEUS
Para Luciano,
Teria sido eu amigo teu
Neste estado
Amigo das encruzilhadas
Pois também vivo com o fio da faca
Roçando pelas minhas estradas
Das vielas da Gama
Eu te arranquei para outro mundo
E você zombou dele
Com sua graça de malandro
Mineiro-favelado-suicida
Estou tragando a dor de um irmão
Trancando a fumaça das lembranças
Das mudanças e da camaradagem
Este verso baleado de saudade
Feito aos prantos
É a moeda sobre os teus olhos
Para o barqueiro imundo
Nossa curta eternidade.
LUZ
Só me interessa a cor das paisagens
As pessoas que a atravessam
Como um Sol que irradia a noite
Só me interessa as coisas intensas
Os pensamentos positivos
E a pouca reclamação
Só me interessa o canto que alegra
A roda que se agiganta
Feito um bloco de carnaval
Só me interessa o verso
Que se disfarça de triste
Pra sorrir feito um beijo regado
Só me interessa as fantasias
E as folias irrigadas
Como uma plantação de alface
Só me interessa o muito
O exagerado
A tempestade e o Sol de verão.
CONFEITARIA
Sou o confeiteiro das palavras
Meu silêncio é quase nulo
Porque sou um bolo
Ou uma torta
Ou o pão da hora
Quente e amanteigado
Como todos os versos que fabrico
Estou farto de tanto desejo
Que não se corresponde
E tanta culpa que se esconde
Como um pique da minha infância
Nada é mais poético que cafés e padarias
Como tradução fotográfica
De velhas poesias
Que modernizam as passagens
Estou perto do meu aniversário
E não tenho como partir a mim mesmo
Minhas palavras ganham novas inspirações
E minhas aspirações se assemelham
As de um poeta platônico
Não toca aquilo que ama.
SINAIS
Quem não gosta de um aceno discreto?
Adeus despistado...
Ou um olhar que te beija distante?
Gestos singelos são feitiços
Emergindo da cartola
Um piscar tão atinado
Que apenas o destinatário
Sabe a marca da cola do selo
Os pequenos gestos
Guardam os grandes segredos da paixão
Trazem dentro
Como em um poema
A dor e o prazer
Pequenas coisas do coração.
FENDAS
Simplesmente contigo sou
Sou carícias
Mãos dadas
Todos os dias são poucos
Vontade de letra
Sensação de poesia nascente
A brotar das minhas fendas enferrujadas
O orvalho goteja noite adentro
Faz sorrir a manhã
Passo um café amargo
Doce me tem sido as águas.
SOBRE O IMPOSSÍVEL
O impossível coloriu o rosto
Passou pela fissura de agulha
E deslizou sem amargura
Pelo buraco da fechadura
O impossível nadou rio acima
Acertou o alvo da rima
E acendeu luz-vida
Desfazendo o vazio pressuposto.
O VENTO
O vento é o continente beijando o mar
Soprando energias oceânicas
É o Equador como marco das forças que o exprime
No dizer ventilado dos mares sedentos
O vento é fonte lasciva da sensação poética
O verso é o vento da contradição
Circuito nervoso da lâmpada humana.
SINTONIA
Quando a palavra cinge a vibração do encontro (amor)
É quase nula a inspiração da forma
Dá de escrever nas páginas da memória
Regando o jardim da poesia muda
A poesia que sonha comigo
Que bebe do meu sono
O verso infinito do nosso encontro.
PORVIR
Nada é surpresa para quem o vento sopra
O sopro do vento traz o cheiro do destino
Vivo de pensar nas curvas do vento
E de tanto quebrar em suas dobras
Sinto primaveras que estão distantes
E nuvens que são feitas de fogo
O vento traz cinzas quando não há fumaça
Sinto poeticamente o sopro.
CRUZ E ESPADA
Mineiro de fé aguda
Carregando a cruz pesada
Dos excessos da juventude
Sujeito da terra
Com cheiro de mato
E fumaça de estrada
Fabricador de brasa
De casa
Mergulhador de paisagens.
O VENDEDOR DE VETORES
O passo, o espaço e o cansaço
Tipografado no carimbo da sola
Desenhando o trilho curvilíneo
Que compõe o fotolito negativo
Revelador da impressão das dores
As cicatrizes como digitais
E a fotografia sepiada no portfólio
Compunha a arte simétrica do semblante
E a silhueta na ausência da luz
Era um traço triste, pois,
A infelicidade se esconde em euforia
Uma nova cidade
Novos compradores de tipos
Descobertas, desencontros
A poesia apenas derrapou na curva.
RUA, RUAS....
Entre um sinal e uma tragada
A bagunça está instalada
E o que deveria ser número
Se tornou uma agulha nas avenidas
Mas os cruzamentos da vida
Seus entroncamentos e desencontros
Não apagam o que o destino desenha
A arte
A paisagem
O prata-discreto
Versus vermelho-paixão
A cidade das cores
Crianças
Vinhos e rock and roll
Pianos de papel
Me trazem no peito
Estrelas
Estrelas
Bagunçam-me por dentro.
DERRAMES
Como um café que esfria
Requentar perde o sabor
Vinho aberto
Coca sem gás
Lamúrias de amor.
FERRO
Murcham as flores
Ficam espinhos
Quebram-se os cabos
Nascem outros roxinhos
Desfalece a cunha
Resta o machado.
MANDACARU
Versos ao vento
Versus saudade
Vão-se os alaranjados de espatódea
Com os últimos ventos do verão
O amarelo das aleluias sutis
Numa dança com os tons de lilás e roxo
Desabrocham das quaresmeiras
E eu sigo cactos.
FLORES DA QUARESMA
As cores vivas das flores de quaresma
Vibram em mim lembranças cheirosas
Cada canto das serras daqui
Cada onda das praias daí
Nossos vinhos
Teu ciúme louco
Esse teu charme descolado
de militante de esquerda
Delicada como a tez da flor do campo
Mas de fibra como uma loba de serra
E eu nunca te escrevi um poema
Talvez por ser a própria poesia
Hoje te guardo
Te autógrafo
Tatuo você na minha letra.
RECORTES
O poeta fora de órbita
Distante do seu tempo
Remenda suas dores
Tornamo-nos obsoletos
Eis o objeto que somos
Derretemos no tempo
Como cristais em tela
Não suportamos quedas
Fizeram-nos substituíveis.
POEMA ÚNICO
O poema que não foi escrito
Suplica um verso forte
Prescrito
Reescrito vezes mil
Poema casto
Poesia sorte
Acerta o tom
O som
E a textura primorosa
Delícia poetizada.
ALGUM DIREITO
De serra e fogão à lenha
Abri as portas do meu coração
Descortinando as estradas
Colhendo flores
Sem arrancá-las
De serra e fogão à lenha
Autografei o passado
Dando de alma uma poesia
Que já não fala mais por mim
Hoje o poema tem gosto de canela
A farinha é mais peneirada
A pimenta está mais picante
DENTE DE MINAS
Minas é dentro da gente
Serras desnorteantes
Paisagens oníricas
Jardins do céu
Minas fala por seus vilarejos
Homens tecedores de casas
Mulheres encantadoras de sabores
Há mais numa vila de Minas
Que em todas as ruas de Paris
Mais fermentação que toda a França
Um tanto mais de florestas que toda Europa
Temos Ouro Preto também
Mais rios que o velho continente
Minério pra armar dez exércitos romanos
Minas é Roma
Minas é o centro do mundo.
NÓS E O MUNDO
No mundo dos poetas...
Não há fronteiras
Os versos quebram barreiras
Metáforas desfazem as linhas da geografia
No mundo dos poetas...
Assim como o Sol perfaz
A delícia da broa é a divisão
No mundo dos poetas...
A linguagem é o humanismo
O nativo
O colorido
O sublime primoroso utópico
No mundo dos poetas...
Só há portas para o sono
Separando o real do onírico
Escancaro portões da fantasia.
RECORDAÇÕES
Quando pinço as delícias da memória
Vejo que os versos são daquele tempo
Benfica de Minas
Roda de bicicleta
Muros baixinhos
Portões sem cadeados
E talvez por não haver barreiras
São deste tempo as amizades apertadas
Que acendem ainda
As brasas dos nossos churrascos.
CASA POEMA
Morada de retalhos criativos
Com as lamparinas soprando a serração
Nessas horas em que a lua beija os amantes
E a grandiosa serra banha seus jardins
Garrafas derramam sobre as almas
o perfume do vinhedo inebriante
A serra sem nenhuma piedade sopra
No cair de sua madrugada a geada
Que se dissipa com o calor esculpido
Em imagens surreais de fogo
São deste encontro e síntese
O choque entre o frio e a lenha
A dança da serração e fumaça
Do pau e da brasa que se acinzenta
Como o pó, o sono e o desmaio
O silêncio rompido com o beijo que estala
Na madeira rompante que penetra o queimador
Entre roça e mistério e cidade oculta
Entre a brincadeira ofuscante do céu
Assim é seu ensaio
Desmaio do tempo e eternidade
Que crava nos pés desta serra
As letras de sua poesia.
PEDREIRO E POETA
Com o concreto tenho feito meus versos
Sob a abstração das ideias e dos pensamentos que voam
Acorrentando imagens e eternizando ventos
Rebocando o suor e suando cimento
Deixei um pouco as palavras na gaveta do peito
Tirando delas as paredes rabiscadas
Arquitetura e verso se somam e se contraem
Numa dança simétrica que rasga a paisagem
Fazendo brotar flores, cercas e o pouso da escrita
Dando forma ao verso tocável
Guardo a poesia num relicário de serra.
NOSSA AMPULHETA
As palavras ainda continuam nuas
E nulas e turvas
Como tem sido o desencontro do tempo
Com a purpurina da areia
Deixando o brilho do seu quartzo
Depois de se quebrar e desmedir a gente.
SOBRE
Ouço os gritos entorpecidos das multidões
Como um telefone em dia de desentendimento
E vejo as purpurinas
E as meninas
Que nascem bailarinas
Cruzando seus passos
E sinto o toque dos mendigos
Dos bêbados e descamisados
Que não estão nem aí pra coisa alguma
E sei a razão dos comunistas
A grega
Romana
E de toda a lógica entre nós
Sei a cor dos sabores
De cor a combinação das cores
Sua antítese
Seus resumos
Sei como o álcool nos destila
A pasteurização do queijo
E fundir de todos os cafés de Minas
Sei dos livros
De Platão e suas sombras
De Darwin a Carlos
De Sigmund a Oswald
De João Sertão
Aos rios
Sei da república
Dos contos
Dos fatos
Dos cânticos
Sei dos ventos
Dos colapsos
Das dores e dos amores
Sei dos ninhos
Das moradas
De todas vidas enamoradas
Mas não sei de mim.
TRINCA-FERRO
O canto atravessará as armadilhas da floresta
Cantará por entres as frestas
E feixes de luz
Sempre a procurar o sol
Depois irá deitar
Não sem antes a Lua
Dormir no fundo do raiar da luz
Que se revela mágica
Quando a noite deita
O dia revela a beleza da noite.
SERRA DA PIEDADE
Como Deus esculpido no alto
O santuário abraça distâncias
E afaga do alto de sua serra
Sabará, Belo Horizonte e Caeté
Em seus pés mais que firmes, Roças Novas
Terra fecunda, filha de Roças Grandes
Ambas, o estômago da nossa violenta mineração
Em suas estradas a ferradura exauriu o chão
Abriu picadas e novos caminhos
E foi este povo tropeiro e mateiro
Que ergueu no alto de sua serra
O mais alto de todos os santuários
Promovendo este grandioso encontro
Entre a arquitetura celeste e a adoração humana
E por suas passagens subiram peregrinos
Não para trazer em seus braços os milagres
Mas para ter a graça divina deste encontro...
Desta proximidade sagrada
Com a visão panorâmica de todos os pecados
A piedade submerge todos os gritos aflitos.
OUTRO
Minhas bagagens foram todas perdidas
Sem que eu me importasse sequer
Em rever os meus pertences esquecidos
E me fiz leve como linha ao vento
Costurando novas impressões.
FRAGRÂNCIAS
Beijos e maravilhas
Rosas e azaléias
E nessas simples formas de cultivar a vida
Os jardineiros cultuam
Como um boticário
As fragrâncias dos mais deliciosos perfumes.
BARRO
As velhas igrejas de Minas
Vão durar mais do que nossa moderna cidade
A argila do passado é muito mais forte
Que o concreto do presente
É como se o passado apagasse o futuro
Fazendo dele apenas passageiro
Guardando as nossas tradições
Nos traços e compassos
Fixos como os crucifixos
A fotografia diária do nosso sacrifício.
ANTÔNIMO
Só o amor não enxerga pelos defeitos
Mas pela sensação
De um morder de maçã-verde
Que chega a estalar na boca
Só o amor não cheira pelo suor
Mas pelas flores alegres
Que exalam e se embebem
Da transpiração do jardineiro.
PRAÇA
As praças do interior
Eram leves como um poema
Verdes e floridas como o cinema
E cantavam seus retalhos
No costurar da vida
Todo o tapete da nossa saudade
A música foi ficando mais alta
E a grama dando lugar ao concreto
Os bancos onde faziam ninhos
Foram tomados por quadras
E desaparecendo os pássaros
Mas a praça ainda sobrevive
No silêncio das manhãs
E na solidão da madrugada
Onde o poste reluz
O baú da poesia.
CHUVAS DA TARDE
Minha avó fritava bolinhos
Quando a chuva fechava a padaria
O cheiro do fósforo ainda acende a memória
Café em xícara de lata
Doce como vovó
Deitava-se cedo
E na escuridão
Chovendo ou não
Ela percorria suas preces no terço.
CIDADES
Sou de muitas cidades de Minas
Muito mais delas que elas de mim
Eu partirei elas ficarão
Com suas esculturas duras
E suas curvas acentuadas
Com seus telhados altos
E o cheiro de candeia queimada
Virão outros poetas
Que teceram novas paredes
E jardineiros semearão novas primaveras
Minas continuará sendo Minas
Como um queijo curado
Uma cachaça curtida
E o terço cada vez mais fundo
Na alma e no coração do povo.
PÁSSAROS
A janela da direita está aberta
E o vento levanta flores
Que voam coloridas
Desflora liberdade
E mostra seu desejo
Porque tens a ânsia
Que vê o belo trançado
Costurando o fazer dos ninhos.
CRIAÇÕES
Depois de criar minha moeda
Decidi empilhar tijolos
E cobrir minhas mãos de calos
Esculpir as colunas
Os corredores sobre os alicerces
E as cores do nosso destino
E a forma foi ignorando o compasso
Procurando apenas o ângulo onde cruza a régua
Numa simetria letrada
Desenhando os códigos onde cantam metáforas
Pintando páginas de arte concreta
Como no peito de uma enxada
Que mistura o concreto
E faz firme a paixão.
QUERERES
Quero dormir no teu cheiro
Entre tuas taças
Embriagar do teu vinho casto
Quero encontrar tua rua
Chamar por tua boca
Embaraçar nos teus cabelos
Quero me perder em ti
Confundir contigo
Plantar em seu jardim
Quero sentir seus suspiros
Aspirar as flores que planto
Apenas para te ver sorrir.
O ENTREGADOR DE PÃES
O dia desperta com o peão da bicicleta
E o cheiro do pão quente no balaio de taquara
Pedalando o acordar dos galos
Como quem dá corda numa caixa de músicas
A catraca rompe no pedal da manhã
Descortinando a noite
Como se o sol emanasse do aro rodado
Inaugurando o destino
Cortando a fita do porvir
Com seu canto-grito:
- Padeiro
E assim, meu avô fazia nascer o sol.
FORMAS
E como se minha mão deslizasse na argila
Vou esculpindo e moldurando o objeto
Até formar o gargalo da moringa
E como se meus dedos traçassem os riscos
Vou perfazendo os pequenos detalhes
Até constituir uma tela colorida e dependurada
E como se meu corpo fosse uma estátua viva
Vou contorcendo cinza e abrilhantado
Até o desavergonhar desdentado do sorriso
E como se minha alma dissipasse metáforas
Vou distorcer o sentido das palavras
Até imprimir em tua alma o delírio da minha arte.
CHUVAS
As ruas da noite ganham abraços
E vidros embaçados
Depois das águas torrentes
Do mês de dezembro
A chuva que maltrata
Nos afaga
Despreocupadamente
A madrugada e os bichos da noite
Desgovernados e desalojados
E minha mão se ocupa apenas
Desta obra íntima
Que me liberta do desamor.
CEREJAS E CERVEJAS
O mundo dos doces
Das cores e dos sons
Das ruas escuras
E mãos contrárias
O álcool e o perfume
A cereja e a cerveja
Os carinhos e as despedidas
A biologia e o concreto
A junção das palavras
Tese e antítese
Fotossíntese versus argamassa
E a poesia vai cosendo
Cruzando a linha
Atravessando seu algodão
Colorindo brancos vestidos.
ERÓTICO
Duas metades de morango
Um para cada nome
Uma parte é doce
A outra é neutra
Sabor de vento
Provocação e intensidade
E pede que seja lento
Como se meu coração
Não tivesse em sua batida acelerada
A lentidão do tricotar dos versos
Dois anos para mim são dez
Dois dias são vinte
Falto das tuas mãos
Dos teus lábios
Teus lápis
Teus lapsos
Teus colapsos
Falto de ti.
ALÉM DA POESIA
Um poema tem muitos olhos
Mas apenas um endereço
Como uma carta
Que não se deixa guardar
Mas só quem recebe
Sente o perfume
Que ela não carrega
Mas exala
O cheiro está nas entrelinhas
No grifo imperceptível
Que grita aos olhos
Como um beijo que fica guardado
Quando o coração está fechado
Feito um pincel
Que pinta por dentro
Lindas e invisíveis flores.
XILOFAGIA
Uma centelha pretende incendiar meus versos
Mais inventiva que uma fogueira
Estupenda como um forno a lenha
E vem de cima pra baixo
Levantando meus órgãos
Empurrando meu coração pra boca
Consome meu sono como madeira
Onde cravo com a lâmina inspirativa
As palavras em combustão
E nessa xilofagia
Com notas acentuadas de morango
Passo o café da minha poesia.
OUTRO
A insônia é a mão da iniquidade
Tocando a campainha do sono
É a consciência mastigada
Como lata de automóvel batido
Quando não há mais lanternagem
Preciso de um chassi novo
Quero cortar meu pescoço
E arrumar uma cabeça menos pesada
Vou rasgar todos os meus versos
Engolir todo esse choro
Retalhar toda minha carne.
SEJAMOS SAUDADE
Adoro melão
Sei apalpá-lo
É preciso ser consistente
Porém macio sua boca
Para ser doce
Assim como as rosas
Ofertadas sem espinhos
Embrulhadas e enfitadas
Como o presente atrás das vidraças
Feito o barco que atravessa o rio
Quando cai a manhã
Apenas para ver o voo das garças
Não provarei amores proibidos
Desses que me destroçam
E depois que a hora grita
Guardam a culpa e eu a solidão
Estou há muito tempo sem um carinho no rosto
Sem uma mão navegando sobre as minhas costas
Ou um telefonema de saudade
Despertando alegria e paixão
Gosto de mesa de café bem posta
Com muito amor no embeber da manhã
Bolo, café amargo, pão-de-queijo
Beijos e mais beijos...